Vivemos em tempos estranhos

O meu “texto de bolso” para o debate de dia 19/6/2015 entre os candidatos às primárias de Setúbal: 

(fotografia do Miguel Dias)

Quem nasceu perto do 25 de Abril não conheceu um país onde a falta de liberdade era comum. Quem viveu a maior parte da sua vida depois do 25 de Abril, viveu num ambiente de expectativa de melhoria das condições de vida, de valorização do progresso e de abertura do país ao resto do mundo.

Sempre pensei que, apesar do nosso atraso estrutural, conseguiríamos dar a volta ao país e ter a sabedoria suficiente para criar condições de desenvolvimento, com a “ajuda” dos nossos companheiros na Europa. E até há alguns anos acreditei que era isto que se estava a passar, que o país estava melhor. Cresci com a democratização do ensino, que permitiu qualificar uma geração a níveis nunca antes alcançados, cresci com a modernização aparente do país, visível nas infraestrurturas que foram aparecendo por toda a parte, ligando o país de uma ponta a outra nalguns pares de horas (quem se lembra das 10 horas de distância de Lisboa a Bragança?), cresci com a melhoria do acesso aos cuidados básicos de saúde e com o aumento da qualidade da sua prestação, com o aumento da esperança média de vida e com a diminuição, para números mínimos, da taxa de mortalidade infantil! Cresci também com a crise dos anos 80 na margem sul, com a ameaça do desemprego e da fome a pairar sobre muitos dos que me rodeavam, mas, até nessa altura acreditei que íriamos resolver os problemas estruturais do país e que daí para a frente só poderíamos melhorar.

Não pensei durante a maior parte da minha vida que pudessemos viver agora uma crise como aquela com que nos confrontamos. Uma crise que está a pôr em causa o que tínhamos de seguro: saúde, educação, possibilidade de contribuir activamente para o desenvolvimento do nosso país e a esperança de que os nossos filhos continuem a viver aqui, mas num país melhor que o que temos hoje!

Estes são de facto tempos estranhos, em que o mais fácil é ficar perdido nos meandros do discurso vigente e perder os sentidos pelos quais orientamos as nossas vidas. Confrontamo-nos com uma política de austeridade a todo o custo, com uma Europa que não preza os seus cidadãos e que parece cega perante a perda das suas conquistas de desenvolvimento e paz dos últimos 70 anos!

Tempos estranhos podem motivar reações diferentes: ficar quieto a fazer de morto a ver se o que nos assusta se vai embora e não nos come, fugir, ou confrontar a fera com as armas que tivermos à mão e com a ajuda dos nossos companheiros, de preferência!

Decidi não fugir, nem fazer de morta, e estou aqui porque acho que todos queremos o mesmo: confrontar juntos os tempos estranhos em que vivemos e avançar para os domar!

Claro que temos o dever de nos interrogar sobre o que correu mal. Respondem-nos que vivemos acima das nossas possibilidades… Mas de facto, não é essa a história real.

A história real é que o nosso país tem fragilidades estruturais que não foram debeladas a seu tempo e que nos vieram pesar numa hora de aflição. A história real é que vivemos num país em que a estrutura produtiva se baseia em pequenas e média empresas e em que não houve uma aposta estrutural suficiente na qualificação de setores que nos permitissem atingir um desenvolvimento sustentado, sustentável e diferenciado.

As qualificações dos portugueses de facto melhoraram desde 1974, mas muitos dos nossos indicadores estão ainda abaixo das médias da OCDE: o número de licenciados na população ativa é cerca de metade da média da OCDE e o número de doutorados em ciências e engenharia é ainda inferior à média da OCDE! Há ainda muito por fazer pela qualificação da nossa população. E este é um investimento de fundo que tem de ser feito em continuidade e que não pode ser menosprezado.

A história real é também que todos tivemos que salvar uma banca predatória, e pagar por isso um preço demasiado elevado por um bem que não adquirimos!

É agora urgente que uma esquerda europeia livre, anti-austeritária, responsável e inclusiva encontre novos caminhos até uma Europa democrática. Que estejamos  na Europa com os países que se confrontam com problemas semelhantes aos nossos, e que consigamos quebrar a espiral do discurso da falta de alternativas: austeridade ou morte, não!

É agora urgente que não prescindamos das conquistas da escola pública e de um sistema de saúde público de qualidade e para todos que este governo tem querido vender a quem quiser comprar ao desbarato. São estas conquistas que fazem de nós cidadãos de um país em que todos estamos ligados uns aos outros e não pessoas que vivem num país e que contribuem para que uns poucos lucrem, vendendo-nos aos outros todos por meio tostão.

Vivemos em tempos estranhos em que o tempo parece andar para trás. Ajudemos a inverter este curso e participemos num tempo de mudança que seja um tempo de reconstrução  de um país. Para que daqui a 4 anos possamos dizer “estamos hoje melhor que antes” e não o contrário!

Acreditemos e provemos a todos que a esquerda está aqui. Não desistamos dos valores da liberdade, da igualdade e da solidariedade que nos permitem falar sem medo e poder sonhar em viver numa sociedade, num país e numa Europa, mais justos, mais iguais e mais solidários e que sejam de todos e para todos.

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